sábado, 7 de abril de 2012

Gaúcho sem fronteira.


Do pampa seco e homicida, tal quis o destino árido ao qual se dobraram as nuvens do céu, das terras sem nome em algum lugar pelas bandas do oeste do grande torrão sulino, da era das eras, que arrebata em prostração o mais descrente dos viventes, da pequena moradia entre o interior e a cidade sem nome, um taura de sangue guapo, daquele que não fala duas vezes aquilo que bem ou mal o quer: Giuvelino Ferreira.
No bolicho do Adão, Giuvelino escancarou por entre o grosso bigode aquela boca mal servida de dentes e acabou de uma só vez com aquele martelinho da mais braba das canas que o velho Adão possuía. Já era o terceiro, mas o xiru mantinha irrepreensível a pose de quem nada tivesse bebido. Era, sobretudo, homem dos fortes, que dividia com a ânsia pelo trago de cada dia também a da peleia de cada dia. Por esse motivo, bebia sempre só. Ninguém pagava para ver o que seria dividir uns goles com o tal homem que, todo dia à tardinha, aparecia ao velho boteco na sua estica gaudéria, um trinta e oito ao lado direito da cintura, e no outro a adaga sempre muito afiada.
“Desce a última, home, que já tomo e vou-me embora, e pode pindurá o resto também, semana que vêm eu te pago.” O velho Adão, sem questionar, serviu sobre o balcão mais um trago. Não haveria, pois, de querer levar um golpe da adaga imprevisível de Giuvelino. Uma música um tanto baixa roubou a atenção de todos que ali estavam, os outros tomadores da cana logo fitaram Giuvelino com olhos já sabidos do que se tratava, e por isso, olhos que logo disfarçaram e buscaram outros pontos por entre os espaços vagos do boteco.
Ma que arruda! Essa bruaca não me deixa quieto nem por uns minuto! Vê se pode, veio Adão, nem uns trago posso tomá em paz!"
Giuvelino tateava o bolso da bombacha com demasiada irritação até encontrar o objeto dono da canção tradicionalista que, um tanto abafada, atravessava o espaço por entre as paredes sujas e mesas encardidas do velho boteco. Escutou com o desdém dos machos sabidos àquilo que a sua mulher, Zulmira, lhe dizia. Ao término do que ela disse, guardou o telefone celular de volta no bolso da bombacha, derrubou o último trago, passou a mão no chapéu e em seguida montou no zaino, rumando logo para casa.
Ao chegar, passou reto por Zulmira enquanto ela resmungava qualquer coisa direcionada a ele. Havia a necessidade de saber dos amigos, de como andavam, e Giuvelino foi sentar-se em frente ao computador. Entrou no seu perfil do friendbook a fim de ver as atualizações. Procurou pelos amigos laçadores dos rodeios da capital que há muito não via pessoalmente. Sorria espalhafatoso, se deleitava com aquela comodidade. Pôde saber do Zé Grande, do Chico Ferroso, do Oswaldo Canhoto, tudo através de míseros cliques. Trocou algumas mensagens instantâneas com alguns de seus amigos que também estavam online em seus perfis, matou saudades.
Passou grande tempo em frente àquela máquina dos sonhos humanos. Deu por conta e viu que a noite já havia se deitado por sobre o pampa. Bateu-lhe o sono e ele se rendeu indo deitar ao lado de Zulmira que já roncava profundamente.
O dia seguinte passou corriqueiro. Foi o trato aos animais, a lida no campo, o conserto da cerca em alguns pontos e logo o sol esboçou uma caída de leve por sobre o horizonte. Era chegada a hora de encilhar o zaino e rumar para o bolicho do velho Adão. Giuvelino, porém, não contava com uma das patas do cavalo machucada. Era um corte profundo, devia, certamente, ter se enroscado na cerca. O animal não podia trotear inteiro, mancava muito.
Giuvelino impacientou-se. Estava ameaçada a sua ida ao velho boteco e os martelinhos haveriam de ficar para quando o corte do cavalo cicatrizasse. Pensava em quantos dias duraria a espera, talvez algumas semanas até. Irritou-se com a situação. Para ele, comparecer todos os dias ao velho boteco era muito mais que necessidade, era o cumprimento de mais um dia de lida, exercido pelo taura com a mais sincera lealdade. Se não testemunhasse alguma novidade das que se apresentavam escassamente no bolicho, Giuvelino não dormia, o exercício do descanso durante a noite se faria desnecessário a ele.  O destino levava-lhe ao chão os tragos que por ele seriam derrubados se acaso lhe fosse permitido cumprir com a sua sina de amansador de canas. Foi então que o taura se lembrou de algo que havia comprado há pouco mais de seis meses e que, se não lhe falhava a memória, estava guardado no velho galpão.
Deu partida e foi-se ao bolicho do Adão. Quem cruzava com Giuvelino na estrada deparava-se com um gaúcho muito bem trajado, de lenço vermelho, de chapéu e bombacha, de adaga e revólver na cintura, a toda velocidade, feliz e sorridente, com a sua bicicleta a motor.
                                                                                  

O quinteto e as histórias.

Naquele verão finalmente havia se consumado a tal viagem à praia, era plano antigo de todos os cinco. Embora tenhamos ido apenas Abimael, o Soldadinho de Chumbo, Sérgio e eu, tudo andava na mais completa serenidade. O quinteto era quarteto e restava a nós ter de aprender a lidar com a falta do Gump. E ele fazia muita falta!
A característica permanente de nossa estadia no litoral era a mesma do que quando estávamos em qualquer outro lugar reunidos: muita cerveja, muita caipira e muitas e boas risadas...
Mas faltava aquele fato espalhafatoso, aquela demonstração de ingenuidade típica de cão novo. Sabe, faltava alguém para pôr a mão na parte de dentro de um suporte de lâmpada, na parte de cobre! Talvez nem mesmo o Gump soubesse de como era sentida a sua ausência por todos nós.
No último dia, o sol era maravilhosamente escaldante, uma brisa soprava levemente e o ânimo de todos era ressaltado pelo clima todo perfeito para uma boa despedida. A cerveja passava de mão em mão, de garganta em garganta. A rotina da praia seguia e nós estávamos ali como ébrios espectadores. Repentinamente, uma curiosa e familiar silueta foi avistada a uns metros de onde estávamos. O reflexo do sol nos confundiu por uns instantes, mas logo podemos perceber aqueles braços que terminavam quase nas canelas, aquelas mãos enormes. Talvez o reflexo tenha nos impedido de avistarmos um pescoço naquele ser, pois nada vimos, era a cabeça ligada diretamente ao tronco...
Corremos quase que abobados ao encontro do Gump. Tomou conta de nossas faces um sorriso talvez nunca antes tão satisfatoriamente contente. Era a cereja do bolo que aparecia, era o quinteto que se completava. Feitos os cumprimentos e os abraços calorosos, estávamos todos ali à beira do mar, vendo, sabe-se lá, o que passar.
Cinco era o nosso número e cinco também era o número de algumas gurias que, num quiosque perto dali, nos acenavam todas sorridentes. Fomos até elas.
O tema das conversas paralelas que aconteciam entre nós e aquelas gurias era muito variado. Mas, realizados os desdobramentos, sendo eles sobre religião ou não, decidimos todos nós, os cinco machos praianos e estupefatos, nos banharmos no mar.
 Hollywood certamente nos invejaria naquele momento. Não corríamos, troteávamos em direção ao mar, era uma ida cinematográfica rumo às águas salgadas do imenso Atlântico e todos sustentávamos interiormente todo aquele charme. Em dado momento, pensei estar fazendo parte da cena de algum filme em que o mocinho entrava insinuante no mar para depois aparecer sedutoramente molhado, mas não foi nada disso. O Sérgio entrou, depois o Soldadinho de Chumbo, eu logo após, o Abimael já abria os braços para conversar com as ondas e, subitamente, um estardalhaço chamou a atenção da praia toda. A nossa glória de galãs globais mediante àquelas fêmeas estava arranhada. Olhamos estáticos para trás e vimos o Gump há pouco mais de trinta centímetros mar adentro levantar tonto, com a mão a esconder o nariz bastante esfolado e também a sua barriga. Incrédulos, nós não rimos, nós tivemos ataques súbitos de gargalhadas. Um de nós já nem mais gargalhava, mas gritava e apontava com o dedo para o Gump, a fim de que todos pudessem saber do autor daquela grande barrigada. A praia paralisou-se. Muitos desconhecidos também sorriam, gargalhavam. Lembro de ter visto o pai puxar pela mão a pequena filha e levá-la para fora da água, para longe do Gump, devido ao impacto assustador daquela cena, a criança, pois, poderia se traumatizar tamanha a suposta loucura daqueles rapazes.
Ao justificar-se, mesmo que isso fosse desnecessário, Gump havia nos dito que automaticamente pensou em dar um ponto quando molhou os pés na beirinha da água e o fez. Ora, pobre dele que não soube diferenciar o mar de uma piscina pública...
O fato ocorrido naquele último dia de praia foi, certamente, um dos mais engraçados que aconteceu conosco. Claro, há outras histórias, outros autores (como aquele que pegou as havaianas e...), mas a barrigada do Gump marcou demais como um grande momento cômico do quinteto.
Quando velho, quero contar aos meus netos sobre o acontecido, mas também quero dizer que sem qualquer um de nós, muito menos o Gump, aquele pequeno grupo não era animadamente completo. Apesar de ambos terem seguido, acertadamente, os próprios caminhos, o Abimael, O Gump, o Sérgio e o Soldadinho de Chumbo, bem sabem de como éramos e assim como eu, às vezes devem lembrar com a saudade mais feliz do mundo das nossas histórias. Bons os tempos de quinteto...