Do pampa seco e homicida, tal quis o destino árido ao qual se dobraram as nuvens do céu, das terras sem nome em algum lugar pelas bandas do oeste do grande torrão sulino, da era das eras, que arrebata em prostração o mais descrente dos viventes, da pequena moradia entre o interior e a cidade sem nome, um taura de sangue guapo, daquele que não fala duas vezes aquilo que bem ou mal o quer: Giuvelino Ferreira.
No bolicho do Adão, Giuvelino escancarou por entre o grosso bigode aquela boca mal servida de dentes e acabou de uma só vez com aquele martelinho da mais braba das canas que o velho Adão possuía. Já era o terceiro, mas o xiru mantinha irrepreensível a pose de quem nada tivesse bebido. Era, sobretudo, homem dos fortes, que dividia com a ânsia pelo trago de cada dia também a da peleia de cada dia. Por esse motivo, bebia sempre só. Ninguém pagava para ver o que seria dividir uns goles com o tal homem que, todo dia à tardinha, aparecia ao velho boteco na sua estica gaudéria, um trinta e oito ao lado direito da cintura, e no outro a adaga sempre muito afiada.
“Desce a última, home, que já tomo e vou-me embora, e pode pindurá o resto também, semana que vêm eu te pago.” O velho Adão, sem questionar, serviu sobre o balcão mais um trago. Não haveria, pois, de querer levar um golpe da adaga imprevisível de Giuvelino. Uma música um tanto baixa roubou a atenção de todos que ali estavam, os outros tomadores da cana logo fitaram Giuvelino com olhos já sabidos do que se tratava, e por isso, olhos que logo disfarçaram e buscaram outros pontos por entre os espaços vagos do boteco.
“Ma que arruda! Essa bruaca não me deixa quieto nem por uns minuto! Vê se pode, veio Adão, nem uns trago posso tomá em paz!"
Giuvelino tateava o bolso da bombacha com demasiada irritação até encontrar o objeto dono da canção tradicionalista que, um tanto abafada, atravessava o espaço por entre as paredes sujas e mesas encardidas do velho boteco. Escutou com o desdém dos machos sabidos àquilo que a sua mulher, Zulmira, lhe dizia. Ao término do que ela disse, guardou o telefone celular de volta no bolso da bombacha, derrubou o último trago, passou a mão no chapéu e em seguida montou no zaino, rumando logo para casa.
Ao chegar, passou reto por Zulmira enquanto ela resmungava qualquer coisa direcionada a ele. Havia a necessidade de saber dos amigos, de como andavam, e Giuvelino foi sentar-se em frente ao computador. Entrou no seu perfil do friendbook a fim de ver as atualizações. Procurou pelos amigos laçadores dos rodeios da capital que há muito não via pessoalmente. Sorria espalhafatoso, se deleitava com aquela comodidade. Pôde saber do Zé Grande, do Chico Ferroso, do Oswaldo Canhoto, tudo através de míseros cliques. Trocou algumas mensagens instantâneas com alguns de seus amigos que também estavam online em seus perfis, matou saudades.
Passou grande tempo em frente àquela máquina dos sonhos humanos. Deu por conta e viu que a noite já havia se deitado por sobre o pampa. Bateu-lhe o sono e ele se rendeu indo deitar ao lado de Zulmira que já roncava profundamente.
O dia seguinte passou corriqueiro. Foi o trato aos animais, a lida no campo, o conserto da cerca em alguns pontos e logo o sol esboçou uma caída de leve por sobre o horizonte. Era chegada a hora de encilhar o zaino e rumar para o bolicho do velho Adão. Giuvelino, porém, não contava com uma das patas do cavalo machucada. Era um corte profundo, devia, certamente, ter se enroscado na cerca. O animal não podia trotear inteiro, mancava muito.
Giuvelino impacientou-se. Estava ameaçada a sua ida ao velho boteco e os martelinhos haveriam de ficar para quando o corte do cavalo cicatrizasse. Pensava em quantos dias duraria a espera, talvez algumas semanas até. Irritou-se com a situação. Para ele, comparecer todos os dias ao velho boteco era muito mais que necessidade, era o cumprimento de mais um dia de lida, exercido pelo taura com a mais sincera lealdade. Se não testemunhasse alguma novidade das que se apresentavam escassamente no bolicho, Giuvelino não dormia, o exercício do descanso durante a noite se faria desnecessário a ele. O destino levava-lhe ao chão os tragos que por ele seriam derrubados se acaso lhe fosse permitido cumprir com a sua sina de amansador de canas. Foi então que o taura se lembrou de algo que havia comprado há pouco mais de seis meses e que, se não lhe falhava a memória, estava guardado no velho galpão.
Deu partida e foi-se ao bolicho do Adão. Quem cruzava com Giuvelino na estrada deparava-se com um gaúcho muito bem trajado, de lenço vermelho, de chapéu e bombacha, de adaga e revólver na cintura, a toda velocidade, feliz e sorridente, com a sua bicicleta a motor.